domingo, 27 de abril de 2014

Na esquina da Triunfo com a Vitória, Luz



E quando parecia que ninguém nunca mais entraria pelo portão velho, metálico (tipo "garagem") da sua loja, ele se assustou. Um rapaz de meia idade, barba por fazer e chinelos entrou do nada, com um aparelho enorme debaixo do braço, suado e vermelho, parecendo que tinha sofrido algum tipo de violência moral, ou psicológica. Um estranho desespero disfarçado no olhar, tão disfarçado que saltava aos olhos.
O rapaz disse algo sobre ter um monitor/TV, praticamente novo, mas com um defeito caríssimo de consertar. Não valia a pena. Achou que poderia tirar um troco vendendo a carcaça daquele estorvo tecnológico, aquele lixo de merda que por causa de uma garantia perdida já não valia mais bosta nenhuma.

...

Quando ele soube, quis morrer.

Quis matar alguém.

Quis a cabeça do vendedor, do técnico, da atendente da empresa, dos seus acionistas, dos acionistas dos bancos em que elas mantinham contas, dos seus filhos e famílias.

Quis chorar, e conseguiu...

...

"Era um sonho colorido, mais real que o próprio nascer do sol da manhã, mais verdadeiro que meus próprios órgãos, mais ameno e fresco que aquela noite em Praia Grande. Sonho de menino, de moço jovem, sonho de cinema, tela de imitação. Uma luz que pisca sempre, e faz surgir imagens, sons e tatos quando dá. Sonho em 3, 4, 5, 6 dimensões, dos céus e inferno, de Lúcifer e Gabriel, lindos, louro e mouro, batalhando..."

... ... ... !!!

O tiozinho da loja sacou do bolso da camisa uma nota de R$ 10 amassada, escura, podre. "É o que tá valenu... se cê quisé tentá lá no lixão da Rua do Triunfo, pode ih lá, mas eles não vão pagá muito mais que issu não...". Pareceu não ser difícil pra ele decidir. Botou o aparelho no balcão. Pegou a nota num movimento certeiro e rápido. Agradeceu e saiu.

(O que o velho nunca soube é que o moço pegou uma puta chuva cruzando o centro a pé.)

(O que o moço nunca soube é que o velho abriu seu aparelho e vendeu as peças ali por exatos R$ 33, onde o lucro foi investido em um maço de cigarros, cebolas, molho de tomate, duas passagens de metrô e um lanche no bar da esquina.)

(O que o cara do bar descobriu naquela noite é que a nota de R$ 10 era falsa. Alguém descobriu o chão frio da rua suja. Fechou os olhos. Não havia mais imagem, nem sonhos, nem dor.)


?????????????????????????????????????Por quê???????????????????????????????????

..."Um pesadelo horrível, com dezenas de demônios de ouro me atormentando, me cutucando com lanças e contas afiadas, e números, e perdas e dívidas. O rei toma meu colar, tira minhas roupas, minha pele, suga minha alma pelos olhos, come meus órgãos, lambe meus ossos, enquanto eu cavo, cavo, cavo, o tesouro do meu suor, mina de lágrimas. Mil espelhos se quebram de uma só vez, e eu me quebro mil vezes com eles."