quinta-feira, 25 de julho de 2013

Dona Aparecida


Todo santo dia, dona Aparecida lavava roupa no tanque, afinal o marido dela não tinha dinheiro pra comprar uma máquina de lavar, nem tinha lugar pra botar no apartamento de 25m². Não tinha jeito. Ela precisava deixar sempre umas mudas de roupas limpas pra marido trabalhar e pra seu menino mais velho ir pra escola, a única das quatro crianças que estudava. Os dois mais novos, um de seis e outro de dois anos, quase nunca usavam roupas. Geralmente se vestiam apenas pra passear no centro de domingo e pra receber o pastor em casa. Dona Aparecida tinha vergonha de receber o pastor. Toda vez que ele vinha, dona Aparecida ficava pedindo desculpa de tudo, do cheiro de mofo, da louça suja, do calor, do berreiro das crianças, e tudo mais. Na verdade, o que ela dizia pro marido era que ela tinha vergonha mesmo é de ser pobre.
O pastor era abençoado, morava numa casa linda na Moóca. Dona Aparecida fazia faxina pra ele uma época, mas ele disse que precisava ajudar outra irmã necessitada e dispensou dona Aparecida. Agora ela passava a maior parte do dia em casa, na maioria deles. Quase não conseguia faxina. O marido, camelô, às vezes levava ela pra trabalhar com ele na rua, mas ela quase não vendia nada, não tinha jeito pra isso. Ficava em casa, lavando roupa na sua varanda pequenininha, que dava pra dentro do prédio, um lugar feio e fedorento, ali no Brás. Bem diferente da casa do pastor, que tinha até máquina de lavar, uma grandona!
                - Pastô Antônio vai ora pra nóis consegui ganha mais dinhero...
                O marido de dona Aparecida trabalhava todo dia também, de domingo a domingo, nas ruas da cidade, geralmente no centro, vendendo de tudo, porcarias eletrônicas chinesas, tralhas de plásticos paraguaias, produtos genéricos de todos os tipos e origens, às vezes vendia doces e até espetinho de gato. Vendia bem até, mas o dinheiro ainda era pouco, não dava pra botar todos os meninos na escola, nem comprar a máquina de lavar, nem se mudar pra um apartamento maior. Muitas vezes faltava até dinheiro pra comida. Dona Aparecida aprendeu desde cedo a economizar comida. Antes de vir pra São Paulo, quando menina, já passava fome em algum lugar do Norte ou Nordeste, nem ela sabia dizer exatamente. Aprendeu com a vida a viver com o mínimo, mas ainda assim, sonhava com a máquina de lavar.
                De vez em quando, pra tirar um extra, Dona Aparecida cuidava dos filhos das suas vizinhas, muitas delas mães solteiras, que trabalhavam durante o dia todo. O minúsculo apartamento ficava inundado de crianças, que quase sempre transbordavam pros corredores, apartamentos vizinhos, e não raro até pra rua. Difícil controlar a criançada toda. Dona Aparecida, sempre muito quieta, se esforçava pra berrar e botar ordem em tudo, e quase sempre, depois de horas a fio na batalha, conseguia, pelo menos, manter as crianças dentro do prédio, porque na rua era perigoso.
                - Tru dia o fio da Neide quasi foi atropelado...
                Ficar em casa era bem mais seguro. Mas não menos difícil. Dona Aparecida parecia sufocar ali. Era como se existisse alguma coisa nela que fosse maior que o próprio apartamento. Muito provavelmente a sua fé. Se existia algo que ela poderia se orgulhar de ter em abundância era fé. Mas ela não se orgulhava, não demonstrava isso, era humilde demais pra isso. E tudo agradecia a Deus. E tudo pedia desculpas pro pastor. Afinal o pastor era o homem de Deus, o homem santo, que tinha tudo que as bênçãos de divinas podiam dar, uma família linda, saudável, uma esposa muito bem vestida, aquele casarão, a máquina de lavar. Era por isso que Dona Aparecida não deixava nunca de contribuir com o dízimo, o pastor disse que só assim Deus daria em dobro. E ela esperava, esperava o dobro, sem cobrar de Deus, mas esperava. Se o pastor e sua bela mulher conseguiram, ela e o marido também conseguiriam.
                - Paciênça Luiz! Paciênça! Num duvida do podê e da grória du Senhô...
                Talvez ele duvidasse. Talvez por isso eles nunca tiveram uma máquina de lavar. O marido de Dona Aparecida não ia muito na Igreja não, dizia que não tinha tempo pra ir no culto, que a Igreja era muito longe e que ele precisava trabalhar até tarde. Mesmo assim ele dava o dinheiro do dízimo pra ela, e às vezes ouvia a palavra de Deus pelo radinho de pilha, quando tinha pilha. As crianças também não iam muito no culto, geralmente os meninos fugiam da mãe nessas horas. Sumiam pelo prédio, pelo Brás. Ela morria de medo de que eles não voltassem mais, e fervorosamente orava pelos filhos.
                - Meus mininu é meu tisoro, pastô...
                Quando tinha visita do pastor, ela fazia questão de que os filhos estivessem limpos, arrumados, quietos e sentados na salinha. O pastor ia uma vez a cada dois ou três meses. Era um evento. Fazia várias visita no mesmo prédio. Reclama um pouco do cheiro, dizia às mães pra lavar bem a casa e dar sempre banho nas crianças. Era o que Dona Aparecida fazia, quando tinha água nas torneiras. Mesmo assim o cheiro sumia. Ela até se acostumou com isso, já nem reparava mais, nem comentava. Era normal. Só o pastor que sempre gostava de lembrar os moradores sobre o fedor.
                - A casa do pastô é muito da limpa! Eu trabaiei lá, Neide. Uma bença!
                Mas a casa dela não. Nem o prédio. Nem as crianças. Nem ela pópria, que tomava banho duas ou três vezes na semana, quando tinha água. Mas as roupas do marido e do menino mais velho estavam sempre limpas. Sempre. Com muito custo, lavadas a mão, com o pouco de água que dava pra guardar, com o suor do rosto, com a fé e a esperança de um dia comprar uma máquina de lavar.

segunda-feira, 18 de março de 2013

Seu Messias




            - O Messias das erva? - pergunta o menino.
            - Sei não... A vizinha ali falô que era um sinhôr que fazia uns remédio aí... - ela respondeu.
            - Ele memo.
            Eles sobem algumas dúzias de ruas até chegar numa casinha toda mal-acabada. Lugar nada acolhedor. Com cheiro de comida velha, café de um mês inteiro, e muitos aromas estranhos que variavam de chá até qualquer coisa parecida com maconha. É o que muitos vizinhos comentavam. Que ele era drogado, viciadão mesmo. Esse papo de curandeiro era mentira. Enganação. Golpe. Mas muita gente comprava as suas “poções”. Muita gente mesmo. Tanto que ele pouco saí da casinha podre que mora. Quem via ele andando por aí, geralmente via colhendo as plantas, nos terrenos baldios (ele invadia terrenos privados), nas beiras de estrada, praças públicas, enfim. Vivia, pelo jeito, basicamente disso.
                 - É ali, ó!
            A mulher parou, olhou, e ficou meio sem reação. Parecia que tinha ficado indecisa entre bater palmas, chamar pelo “Seu Messias!”, ou sei lá, um “Oh di casa!”. O menino olhou pra ela, com aquela carinha maldita de que esperava uma reação dela. A senhora olhou o menino nos olhos por um instante. Ela hesitava. Afinal, que tipo de pessoa haveria de ser esse Messias curandeiro? Nome santo já tinha. De salvador. Aquele que salvaria o casamento dela.
            O povo ali do bairro era dividido. Tinha gente que não só acreditava nos poderes mágicos daquele caboclo como dava testemunho dos seus atos milagrosos. Teve gente até sugerindo que ele abrisse uma igreja. Mas num deu certo não. Ele não saia de casa mesmo. Mas pelo menos uma vez na semana ia no mercadinho na esquina da sua rua com a estrada vicinal que ligava o bairrinho periférico da cidade a zona oeste e ao centro. Mundinho esquecido. Mas procurado por aqueles que buscam “cura”. Curioso, dizia a moça do caixa do mercadinho, era que o curandeiro sempre comprava bastante cachaça. Tinha gente que dizia que ele usava a bebida nas suas poções. Tinha gente também que dizia que ele passava o dia todo enchendo a cara. Dois ou três ali da rua viviam comentando que às vezes ouviam o Messias gritando sozinho em casa.

“Doidão, aqueli lá, mano!”

                        “Seu Messias tem pobrema, fia... precisa de médico de verdade, viu...”

            “Neide! Eu tenhu certeza, mulé! Quantas vês eu passava ali e ovia o hómi metenu cuma mulé!”

                                                                       “Nada... aquilé coisa du além, memo...”


Pois é, ninguém sabia com certeza.
A moça, que não devia fazer a mínima idéia de quem de fato pudesse ser o Seu Messias, cruzou quilômetros de metrô e trem, levou horas, pra encontrar aquele senhor desconhecido, indicado pela empregada, que poderia resolver seus problemas. Foi avisada pra não ir de carro, chama muita atenção. Era assim que funcionava. No boca a boca. Não tinha publicidade não. Nem folheto, nem colagem em poste (ali nem tinha muito poste), nem site, nem Facebook (quem dirá internet). Nada além do testemunho vívido dos beneficiados pelo dom divino do Messias. Aquele Messias de uns cinqüenta e tantos anos de idade, maltratado pelo tempo, de expressão cansada, como se batalhasse uma batalha eterna dentro de si mesmo, um martírio psíquico infinito. “Dá medo ni muita genti aqui da vila”.
Medo. Exatamente o que a moça sentiu quando viu sair daquela portinha uma figura judiada, suja, quase desdentada, lambendo os beiços de um jeito bem asqueroso. Os olhos apertados, parecendo sofrer uma dorzinha fraca, mas persistente, em alguma parte bem sensível do seu corpo.  Como um torturado do inferno, saindo da sua casa tão fedorenta quanto ele. O menino guia, rapidinho, vazou dali.
- O senhor é o Seu Messias?
Sem resposta. Olhares profundos de desentendimento.
- Seu Messias? – ela insiste, meio ofegante.
O desgraçado do curandeiro surgiu do nada. Deu um puta susto nela. Ela ficou tremendo por pelo menos uns trinta segundos. Até a respiração voltar a um ritmo normal. Ele fez um gesto grotesco com a mão, que ela deve ter interpretado como um “Espere”, afinal, consentiu com a cabeça e permaneceu imóvel. Ele voltou à casa, e ficou uns minutos lá dentro. Gritou algumas coisas. Será que ela entendeu?
Era fim de tarde já. O tempo nublado deixava o dia mais escuro. Faltava pouco pra escurecer de vez e ela parecia ter pressa. Parecia ansiosa. Que fazia ele lá dentro? Como não ficar ansiosa? Aqueles berros estranhos, às vezes assustadoramente selvagens. Barulhos de lâminas, coisas que raspam, sabe-se lá. E parece que tem fogo também, fritura. Mas não tem fumaça. Em poucos instantes um cheiro forte de chá. E o Messias sai, com uma garrafa pet na mão, com um bagulho amarelado dentro. Bem feio. Cheira chá de folha forte, coisa amarga que nem o capeta.
- É ciqueinta! – ele berra babando.
Ela olha de lado, abre a bolsa, tira a carteira, abre, tira algumas notas, conta, separa, guarda a carteira e fecha a bolsa. Se aproxima e dá na mão asquerosa dele.
- O senhor tem certeza que é isso mesmo que eu preciso?
Corajosa. Resolveu questionar o Messias.
Ele só balançou a cabeça, “SIM!”.

“Aqueli negócio qui eli dá pru zotro bebê é veneno, fia... Dexa doido...”

                                                           “Faiz um bein danado, rapá!”

            “Sei não... Dona Odila falô qui passô mau, mai disse que é assim memo... É, ela tomô sim, por causa do Nélso...”

                                   “Ah si fudê! Tem troxa que cai nessa porra!”

            Ela ainda parecia duvidosa. Olhava enigmaticamente pra garrafa com o líquido denso, meio gelatinoso.

            - E quanto eu tenho que tomá?
            - Né pá sióra não... – disse o Messias com sorriso dolorido.
            - É pra quem?
            - Pru machu.
            - Quanto?...

            Nenhuma resposta. Seu Messias virou de costas e voltou pra dentro de casa. Ela ficou bem ali, desnorteada. Não recebeu as devidas instruções, parecia perdida, olhava e olhava pra garrafa. Saiu dali, se afastou um tanto da casa. Olhava pros lados, quase ninguém na rua. Olhava pra garrafa. Que merda. E agora, quanto tomar? Era seu marido que deveria tomar? Como fazer ele tomar?
            Mas a maior preocupação dela naquele momento deveria ser o transporte. Precisava voltar segura pra estação de trem. Pegaria o metropolitano de volta pro centro. O bairrinho já parecia bem menos amistoso naquele horário (se é que já era durante o dia, pelo menos pra ela, moça acostumada com a carinha bacana do Bela Vista).
            Era fácil. Era só descer pela rua principal. Resolveu botar a garrafa na bolsa e descer mais rápido. Não demorou muito. A estação, abandonada pelo Estado, servia de point pra figuras bem grotescas da noite periférica. Mendigos, bêbados, pequenos traficantes e alguns malucos.
            - Amém Messias! Etá hómi bão dos milagre! Das lágrima de Deus!...
            Olhos e ouvidos atentos, a moça prestava atenção no discurso messiânico do bêbado. Parece que lhe despertou a curiosidade. Abriu a bolsa. Tirou a garrafa. Olhou a garrafa de pertinho. Tentou sentir o cheiro. Fez cara de dúvida. Cheirou de novo. Acabou abrindo a garrafa. Cheirou de novo. Nova expressão. Olhou a garrafa, por mais tempo agora, com mais cuidado ainda. Por fim, deu um gole.
            Não parecia gostoso não. Em instantes, ela cambaleou. Tinha um moço ali que se levantou e ajudou ela. Segurou ela pelo braço e ajudou ela a se sentar. Parecia melhorar um pouco. Até vomitar. E vomitou muito. E suou frio. Até apagar.

“Devia sê preso! Fica danu droga pru povo aí!’

“Verdade, Creide! Ela viu foi Deus!”

                                                           “Mano... foi loco... Várias mina...”

                                   “Ah! Eu cridito sim!”

            “Erva boa. Tem qui bebê é tudu...”
A moça estava agora  numa casinha simples e terrivelmente desordenada. Cabeça pesada. A luz baixa só deixava aparecer a figura sombria de um homem forte, sem roupa, de frente pra ela. Ela sentia o cheiro forte de esquecimento e vazio. A atmosfera ao mesmo tempo sensual e terrível arrepiava a espinha dela a cada minuto. Ficava excitada e tensa. Queria ficar ali e transar, quando também ansiava o momento de ir embora. Nem sabia mais pra onde. É como se não pudesse ir mais pra lugar nenhum. Ficaria ali pra sempre. Esquecida. Mas saciada por aquele homem forte e viril. E depois de transar com ele, tentou fugir pela porta, que dava no nada escuro e deprimente de um mundo esquecido, antigo e perdido. Ela correu e tropeçou no próprio desespero. Acordou na estação terminal da linha de trem. Ainda precisava baldear pro metrô. Ficou imóvel por um minuto. Não demorou muito pra chegar em casa. O marido estava lá, e dormia, depois de um pesado dia de trabalho. E o homem forte e viril também estava lá. Era isso, pelo jeito. Ela não se preocuparia mais. Teria ele ali, pra cuidar dela. Pra salvar ela do que ela mais tinha medo, do esquecimento. Do desaparecimento. De apodrecer num apartamento fino do Bela Vista. Mas não com o seu amante ali. Não na sua casa pobre e suja, que ela poderia visitar sempre, sempre que quisesse, sempre que abrisse a garrafa. Sempre que visitasse aquele santo mágico, mendigo místico da periferia. Sempre que procurasse Seu Messias.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Um último café




-       Você não vai tomar seu café?
-       Claro que sim.
-       Tá esfriando aí.
-       Eu sei.
-       Você vai tomar ele frio?
-       Vou.
-       Por quê?
-       Por que você quer saber porquê eu vou tomar meu café frio?
-       Ué, porque não é muito comum tomar café frio. Você deve ter algum motivo pra isso.
-       Motivo?!
-       É. Uma justificativa. Uma explicação.
-       E por que eu deveria ter?
-       Você faz alguma coisa sem ter motivo nenhum pra fazer?
-       Você não?
-       Não… Bom, às vezes, eu acho…
-       Então.
-       Mas você deve ter algum motivo pra tomar café frio...
-       Não, eu não tenho.  Eu só quero tomar café frio. Eu quero, e só. Eu não preciso de um motivo pra isso. Aliás, ninguém precisa de motivo pra nada. Não preciso ficar aqui discutindo com você se tomar café quente ou frio é melhor ou pior, se é normal ou estranho, se é certo ou errado. A gente pode passar toda a nossa vida discutindo a temperatura do meu café e no fim eu vou tomar ele frio do mesmo jeito. Pra que ficar discutindo se a gente nunca chega em lugar nenhum? Aliás, não existe lugar nenhum pra chegar.
-     Talvez não... Então por que você tá aqui esperando seu café esfriar? Por que você tá aqui sentando me ouvindo, respirando e pensando? Por que você se esforça em viver se você não vai chegar em lugar nenhum, se um dia você vai morrer?

Então, pela primeira vez ele não apenas pensou na sua morte (afinal, passou boa parte da vida pensando nela) mas sentiu a morte passando por ali, abrindo a porta, sentando do seu lado, pedindo um café e olhando pro copo, esperando o café esfriar.