quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Sem saída




Incrível é a diversidade de atividades (lícitas e ilícitas) que podem acontecer num lugar um tanto comum. Mais que um lugar comum, aquele beco no bairro da Lapa é um lugar esquecido. Esquecido pela própria sociedade (ou parte dela), que abandonou aquele espaço, deixou o beco pra quem lhe bem servisse. E, é claro, ele ganhou novos usos, diferentes daqueles que possuía antigamente, quando o bairro (até então industrial) contava apenas com aqueles casarões e grandes “alojamentos” de proletariado.
Não diferente de antes, os assalariados ainda são maioria no bairro, mas não são exclusividade. Uma série de outras figuras pós-modernas perambulam por lá, inclusive naquele beco esquecido. Sim, o espaço esvaziado foi lentamente sendo preenchido por aqueles seres e por suas culturas tão estranhas ao cidadão comum, trabalhador, assalariado. As putas, por exemplo, não são novidade na Lapa, mas sim naquele beco. Encontraram ali refúgio e sossego no seu trabalho, longe de cafetões e cafetinas cruéis, exploradores. Ali elas oferecem seus serviços, negociam preços, discutem entre si, às vezes até saem no tapa. As travestis, então, nem se fala. São as maiores agitadoras do velho beco, transformam aquele espaço morto em um grande salão de festas.
Claro que os pequenos traficantes também usam aquele espaço. É perfeito para a venda discreta que praticam. Os clientes costumam chegar depois do fim da tarde. Compram de tudo. Alguns usam ali mesmo. Vão até o fim da rua sem saída, se sentam no chão, preparam tudo e mandam tudo pra dentro. Alguns saem de lá sorrindo, outros com uma cara muito pior que estavam quando compraram seu bagulho. Esses últimos saem sempre correndo, como se ali existisse uma ameaça mortal. E logo voltam, sedentos de mais barato, compram mais erva, mais pó, mais pedra. Correm lá pro fundinho e se acabam. É o fim do caminho.
Mas não só de criminalidade vive o beco abandonado. Tem vezes que meninos de rua usam o espaço pra brincar. Apostam corrida, brincam de pega-pega, às vezes brincam de brigar mesmo. Quando não tem ninguém por lá, casais se aproveitam do beco deserto pra se pegar. Uma putaria lascada. Tem gente que diz que já trepou no beco. Um tanto estranho. Deve ser bem desagradável, o lugar fede muito, tem muito lixo espalhado, e por mais que não haja ninguém por ali, o beco dá de cara com a rua, onde os carros passam eventualmente. Dá pra ter prazer assim? Vai saber...
Dia desses, já na madrugada, um menino de rua passou pelo beco gritando. “FILADAPUTA! FILADAPUTA! FILADAPUTA!”. Um dos traficantes dali, molecão, parou o menino, perguntando que tinha acontecido.
- Que foi muleque?! Cê tá locão?!
- Ai tio, a trava ali num qué me dá o dinhero!
- Qual trava, mano?
- A do casão ali! Aquela do pau mole!
- Filadaputa...
O molecão enfiou a mão num saco de lixo, tirou dois papelotes e deu na mão do menino.
- Vende ae, muleque.
Ele foi até o fundo do beco. No meio do caminho pegou um pedaço de borracha velha, gasta. No fim da rua estavam três travestis encostadas num muro mal acabado. Sem dizer uma palavra sequer, o molecão deu com a borracha em uma delas (a mais jovem), que caiu no chão podre do beco. Imediatamente as outras duas correram, berrando, até a entrada do beco, desaparecendo na esquina seguinte. O molecão deu uma surra na travesti, e só parou quando outro traficante da área lhe gritou o nome, lá do outro lado. Devia ser cliente importante.
A travesti ficou ali caída, gemendo e chorando. Logo, um pequeno bando de meninos de rua cercou ela, roubando tudo que ela tinha ali, dinheiro, bijuterias, partes da roupa, celular, até a peruca morena. Limparam a coitada. Um dos meninos ainda deu um chute na barriga dela. E saíram.
Algum tempo depois o beco estava vazio. Nenhum traficante, nenhuma puta, nem moleques de rua, nem ninguém, além daquela figura suja e ensanguentada caída ali no chão imundo. O cheiro de lixo dominava o ambiente, quando um jovem moço chegou perto da travesti. Ficou ali alguns minutos, olhando em volta. Quando parecia mais confortável naquele lugar, botou o pau pra fora e bateu uma. Deve ter olhado por debaixo do que sobrou da roupa da travesti, ficou excitado e não perdeu tempo. Depois, serviço feito, cutucou a travesti, tentando acordar ela. Com sucesso. Juntos, foram caminhando pra fora do beco. Ele acendeu um baseado, ofereceu pra ela, ela aceitou. Sumiram pela rua logo em seguida.
O beco voltou a ficar vazio. Sobrava o cheiro de lixo e sangue, os papelotes vazios de crack. Sobrava o silêncio de um beco esquecido pelo Estado e sociedade organizada. Faltava a pureza dos meninos de rua, a doçura de uma puta jovem e maquiada, a alegria dos adictos chapados da noite paulistana.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

No estacionamento


            “Não é tão assustador assim”, disse a si mesma. Mesmo o espaço estando completamente esvaziado de vida. Mesmo a luz ambiente sendo fraca, deixando várias áreas de sombra densa. Mesmo o barulho do ar-condicionado sendo o único ruído a ser ouvido. Até ela dar os primeiros passos, e seus sapatos de salto bico fino encherem o estacionamento de toc tocs.
            Seu rosto ficou meio distorcido. Parecia que os músculos da cara toda estavam contraídos. Pelo jeito, sua frase corajosa, dita meio minuto antes, não foi dita com tanto confiança assim. Tanto que ela apertou o passo. Seu carro estava longe, o estacionamento era enorme. Carros pra todos os lados, parados de todas as formas, em todas as direções, em todos os ângulos. E pior, fazia um frio desgraçado ali. As mãos dela estavam apertadas, ou de frio, ou de medo, ou ambos. Às vezes, quando se tem medo também se tem frio.
            O medo dela pode parecer óbvio. Moça distinta, fina, rica, andando num lugar escuro, vazio, procurando pelo seu carro, seu bem de alto valor, sem nenhum segurança por perto (“Pra quê eu pago essa porcaria?!”). Medo de ser assaltada, provavelmente. Ou medo de ser violentada, estuprada, sabe-se lá o quê mais. Mas um medo justificável. Viver na metrópole deve ser mesmo terrível. Bandidos por todos os lados. Mendigos, pedintes, viciados. E ela, coitadinha, uma moça sozinha, linda e loira num carro esporte (do ano), travando a difícil batalha contra a cidade monstruosa que vivia. Ela, que merecia muito mais, merecia morar em Londres, Nova York, Dubai, talvez. Esses lugares sagrados onde nada de ruim acontece. Aí sim ela não teria medo.
            Mas não. Ela estava em São Paulo. Estava naquele estacionamento assustador em plena Vila Olímpia. Estava assustada sim. Impossível não estar. Alguns poucos minutos de caminhada e ela já suava frio. O rosto ficou ainda mais contorcido. Os braços tensos. Os passos mais rápidos. E num instante qualquer, ela olhou pra trás, parou por meio segundo, arregalou os olhos, engoliu o ar. Deve ter ouvido algum barulho. E com o passo ainda mais apertado, alcançou a maçaneta da porta do seu carro. Com as chaves já em mãos (moça precavida, pelo jeito), abriu a porta com força, batendo com ela no joelho esquerdo. Mas sem tempo pra sofrer, se enfiou dentro do carro, bateu a porta e acionou as travas. Respirou fundo. Pegou um lenço da bolsa pra limpar o suor, colocou a bolsa no banco do carona, enfiou a chave no contato, ligou o carro e saiu bem devagar. Parecia não querer chamar atenção. E com o carrão praticamente rastejando, foi saindo do estacionamento. Seu rosto tinha até um aspecto melhor. Talvez graças a sua fortaleza de R$350 mil reais. Extremamente seguro, claro.
            Na curva da última rampa, quase chegando ao térreo, ela se deparou com um vulto que descia a rampa também quase correndo, uma figura humana a pé, ligeiro mas sorrateiro como sua própria sombra projetada na parede. Ela se assustou. Mas se assustou demais. Ao invés de parar, desviar ou quem sabe até dar meia-volta, ela finalmente acelerou o carro, berrando. O vulto também berrou. E num instante qualquer, numa fração mínima de tempo, o carro pegou ele. Prensou na parede. Ela, estranhamente ficou muda. Seu rosto voltou a torcer, como no início, só que num nível crítico. Parecia que ela ficaria deformada pra sempre. Talvez sua consciência ficasse. Talvez não. Será que ela sentia medo?


terça-feira, 11 de dezembro de 2012

O louco da praça





Era um menino até que bonito. Se vestia exatamente como queria sua mãe, bem alinhado, roupas novas, limpas, as meias esticadas, cabelo feito e tudo mais. Gastava os sapatos novos dados pela tia, que o arrastava pela mão a passos largos, sempre atravessando aquela praça.
Ela dizia que precisava encontrar uns amigos, sumia por algumas horas, e ele ficava lá, sentado na mesma cadeira horrível, no que parecia a entrada de um prédio velho e feio, em companhia de uma mulher velha de rosto pintado.
E era assim todo dia que ele era deixado pela mãe aos cuidados da tia. “Louca! Eu sei... mas eu preciso de alguém pra cuidar dele”. O pequeno gostava da tia (sempre de rosto pintado também), não sabia se era porque ela sempre lhe pagava um sorvete ou se pelo jeito estranho e engraçado que ela costumava falar.
Curioso foi que certo dia, um daqueles bem quentes, eles foram até a mesma sorveteria. O menino pediu seu favorito, chocolate. Exigiu um bis e logo saboreava um delicioso picolé de baunilha. Ás vezes a tia deixava ele fazer muitas outras coisas que o pai e a mãe não permitiam. Ela falava sobre coisas que eles não falavam, também. Sabia de muitas coisas.
Naquele dia ele usava roupas meio surradas, as mais confortáveis, o que já lhe colocou um sorriso impagável no rosto. Caminhava alegre, quase saltitante, quase dançando, meio frenético. Olhava as pessoas, os adultos, sérios, mal-humorados, de cara-feia, correndo pra lá e pra cá, usando aquelas roupas apertadas, os cabelos sempre penteados, limpos, comportados, silenciosos. Achou tudo aquilo normal, até o instante em que uma figura bem diferente dos demais lhe roubou a atenção. Agia meio estranho, a tal figura, gargalhava à toa de modo um tanto assustador, falava sozinho, ou tinha um amigo invisível, berrava ás vezes, sorria, cantava, deitava e rolava no chão. Muito diferente de todos os outro. Se vestia muito esquisito, roupas velhas, rasgadas e sujas. Parecia também que não tomava banho. Será que os pais dele não mandam ele tomar banho? Será que ele tinha pai e mãe? Talvez não. A tia disse que ele morava na rua.
“É um louco”, ela disse.
Louco. Esse nome ecoou na cabecinha do menino. Então os loucos não tem pais pra mandar neles? E eles podem dançar a qualquer hora do dia? Parecia perfeito. O menino então decidiu que quando cresce-se seria um louco. Mas não ia dormir na rua não, porque é muito escuro de noite. Ia ser um louco e morar numa casa enorme, cheia de loucos igual a ele. Uma casa igual aquela que sua tia lhe falou, a “Casa dos Loucos”. Eles vão todos para lá, e devem pular e gritar o dia todo.
E o menino dizia que queria ser louco. Entendendo ou não, os adultos reagiam de diversas formas. Ás vezes brigavam com ele. Ás vezes riam dele. E ele, de qualquer forma, não entendia. Mas continuava a passear com a tia, tomava seu sorvete de chocolate e assistia o louco brincar na praça. Quando dava sorte, encontrava outros loucos por ali, homens e mulheres, que quase sempre estavam juntos. O menino gostava muito deles, ria com eles, mas tinha medo de alguns. Mesmo assim, na sua admiração crescente, inflava o desejo juvenil de poder ser um adulto louco.
E o menino foi crescendo. A tia foi-se embora. Nunca mais via a tia louca. E poucas vezes mais passou pela praça.
E como todo rapaz jovem, que cresce e se desenvolve, ele se tornou o que um dia ele mesmo definiu como “adulto”. Um homem sério, trabalhador, íntegro, educado, bem vestido, bem sucedido, limpo e respeitável. Porém, se sentia triste toda vez que passava pela praça. Não havia mais sorveteria (ele nem gostava mais de chocolate), nem o prédio onde a tia ia “encontrar os amigos”. Nem os loucos. E o sentimento indefinido que o acometia era vacilante, ás vezes parecendo uma simples e pura nostalgia da infância, outras vezes um inexplicável sentimento de derrota. De qualquer forma, caminhava ali, de passos firmes, bem alinhado, postura ereta, sério, sóbrio e silencioso.

terça-feira, 20 de novembro de 2012

O pombo





- Ah! Que merda!
Foi só ele botar os pés pra fora da porta de casa e lá estava. Uma massa disforme de carne podre, achatada contra o asfalto quente, tostando no sol, cheirando muito mal. Um pombo, com certeza, amassado pela roda de um carro. Seria a explicação mais plausível.
- Caralho, que nojo, mano...
É... Era uma cena bem nojenta mesmo. Aquele sangue seco, coagulado, uma pasta uniforme que unia tripas e penas num quadro de violência urbana. E que fedor do inferno. Mal deu um passo pela calçada, ele sentiu o odor da podridão. Parecia que o cadáver já estava ali há muito tempo. O que seria impossível, sendo que ele havia saído de casa no dia anterior, no fim da tarde e voltado na madrugada. Não havia pombo nenhum ali naquele horário. Nem vivo nem morto. Agora havia uma dúzia deles.
- Que estranho...
Um grupo de pombos parecia cercar as entranhas do ex-companheiro. Não estavam exatamente em volta dele, mas rondando, sondando, num movimento estranho. Era como se tivessem indo em sua direção, dando uma bicada e saindo as pressas. Mas afinal, estavam comendo o cadáver?
- Pombos canibais... Tá.
Não. Não poderia ser. Parecia muito mais uma espécie de ritual funerário. Pareciam dançar de certa forma, reverenciando o morto. Os movimentos eram repetidos, quase coreografados mesmo. E assim, um a um, os pombos caminhavam desajeitados até o cadáver, faziam uma reverência com um movimento de pescoço e logo saiam, quase sempre voando baixo. Com exceção de um, o mais acinzentado deles. Estava muito sujo.
- E esse aí?
Figurava como o chefe do bando. Tinha até uma postura diferente. Se movia menos, de forma quase calculada, nunca se aproximando do morto, meio que controlando o balé dos outros. Uma cena realmente bizarra. De novo pareciam vorazes, como que devorando a massa disforme de carne, penas e tripas. Mas não, foi apenas um pequeno tumultuo. O chefe deve ter perdido um pouco o controle da dança, deveriam estar todos muito comovidos com a perda. Menos o chefe, plácido e pomposo, manco e encardido.
- Parece até um tipo detetive.
Seria uma investigação? Eram pombos peritos? Sua dança fúnebre seria a preparação pra uma vingança terrível contra o assassino humano que cometeu aquela atrocidade?
- Ai, caralho...
Essa idéia deu-lhe um arrepio. Claro que parecia um absurdo, mas de certa forma, aquela dança toda, aquele chefe, e pior de tudo, a estranha sensação de que o pombo morto deveria ser vingado, deixou-lhe com um certo sentimento de desconforto. Ele sabia que era uma grande estupidez, sabia de verdade. Mas o receio era ainda maior. E mal havia subido a rua, resolveu voltar pra casa. Deixaria a mistura do almoço pra depois. O açougue ia estar lotado mesmo.
- Caralho, eu sô um idiota mesmo...
Entrou pelo portão e foi direto a cozinha. Pegou uma vassoura velha e uma pá de recolher lixo. Correu pra fora.
- Puta merda, que nojo...
Botou a pá rente ao cadáver do pombo e com a vassoura empurrou aquela massa podre pra cima da pá. Esqueceu de levar sacola plástica, então teve que entrar em casa com o morto na pá. Colocou na sacola e deu um nó bem apertado. Ao sair pra rua de novo, pra jogar o saco no cesto de lixo, se deparou com uma ratazana que emergia de um bueiro. Ela ameaçou entrar pelo portão da sua casa, e ele, imediatamente, quase sem pensar, deu-lhe com a pá de lixo.
- Ah! Caralho! Merda! Merda!
Até o bicho parecer realmente morto, foram necessários quatro golpes. E a mesma pá que matou o rato, colocou-o noutro saco plástico. E lá foi ele, dar o mesmo fim que deu ao pombo.
- Que diazinho de merda...
Ele perdeu até o ânimo de sair. Sentou no sofá. Ligou a TV. Tirou os chinelos. Seu sossego seria garantido não fosse o terrível calor e um fedor estranho que vinha da cozinha. Ele se levantou e foi procurar a origem do mau cheiro.
- PUTA QUE PARIU!
A mesa da cozinha estava tomada por pombos. Eles dançavam ao redor de uma bandeja grande onde se via claramente uma enorme e gorda ratazana, servida com caldo de chorume e bolinhas de bosta.
         Aterrorizado, ele pegou a pá e matou todos os pombos que estavam ali. Um por um. Colocou todos em sacos plásticos, lacrando-os devidamente. Não saiu pra colocá-los no cesto. Trancou-se em casa. Prendeu a pá de lixo nas calças, fechou todas as janelas e sentou-se no sofá. Agora estava mais tranqüilo. O melhor de tudo era que já tinha mistura pro almoço.

Nem uma gota


O prenuncio de chuva é também o prenuncio da eminente catástrofe urbana. É quase um alerta, um sinal de perigo, sirenes de raios e trovões. É quase imediata à reação das pessoas que vivem nessas cidades, tão imediata é a sensação que algo deve ser feito, alguma atitude deve ser tomada frente aquele situação de perigo. Parece que alguma espécie de pânico toma conta da consciência dessas pessoas.
            A senhorinha que fuçava a bolsa, com certa pressa, esbarrou num moço forte, que corria apressado. Ela parecia procurar o guarda-chuva. Assim como os outros, sentiu o perigo e agiu logo. O tal moço forte tomou sua providência e apertou o passo. Alguns se aglomeraram debaixo de um toldo de boteco. Era a sua fortaleza. Nenhum lugar parecia mais seguro que aquele, naquele instante. Muitas outras pessoas passaram a caminhar mais rápido.
            Era uma marcha sobre a cidade. Centenas de pedestres enlouquecidos num ritmo frenético de Apocalipse. Os compassos finais da canção de um dia ensolarado. O fim trágico. Mas não só nas calçadas é que o prenuncio de chuva causava alarde. O trânsito se transformou, ficou mais feroz, arredio. Os motoristas também sentiram. Sentiram aquela mesma coisa que os pedestres sentiram. Com certeza. As reações não foram menos alarmistas, desesperadas. Não diferentemente, também dirigiam mais rápido.
            E como um inconsciente comando das nuvens, as pessoas ali mudaram de forma drástica seus comportamentos. A pressa se tornou regra. Queriam chegar logo, todos aos seus destinos, pedestres e motoristas. Alguns corriam pras estações de metrô. Outros pros seus respectivos escritórios e comércios. Outros deveriam estar correndo pra casa, lugar mais seguro não há. Estranho era ver curiosos dois ou três pedestres que continuavam caminhando, como se nada estivesse diferente de um minuto atrás.
            E de fato não havia nada de realmente diferente. Era apenas o prenuncio de chuva. Nenhuma gota ainda havia caído, de fato. Mas o pânico já havia se instaurado. Não havia volta. As mentes estavam em alerta, os corações preparados. A senhorinha com o guarda-chuva nas mãos, o moço alto corria ainda mais, os pedestres todos corriam, se escondiam, mantinham os olhos no céu. Os carros passaram a se enfileirar. O trânsito começara a ficar lento. Mas nenhuma gota ainda tinha caído. O simples prenuncio de chuva travou o trânsito. O medo fez isso. O pânico.
            Os que conversavam passaram a usar meias palavras, fazer sinais. Os que comiam, passaram a devorar, como se aquela fosse a ultima refeição. Os que viam as vitrines das lojas, não viram mais nada senão o cinza escuro das nuvens que se acumulavam. Raios. Os que esperavam, mesmo esses, que a chuva pouco afetaria quando caísse, também sentiram aquilo que os outros sentiram. Sentiram o eminente fim da sua tranqüilidade. O prenuncio de roupas e sapatos molhados, das poças d’água, dos restaurantes, padarias e botecos lotados. Os motoristas já sabiam da piora do trânsito. Eles sabiam porque sentiram aquilo. Impossível não terem sentido.
            Mas aqueles que simplesmente não fizeram nada? Não sentiram também? Talvez tenham sentido. Mas por que reagiram tão diferente? Ou melhor, por que não reagiram? Não lhes incomodariam as roupas molhadas, os sapatos encharcados, o risco de gripe, ou o simples fato de que há poucos minutos poderia chover?
            Talvez apenas fossem pessoas precavidas. Deveriam acreditar que o prenuncio de chuva não é necessariamente a própria chuva, e esperavam pra se desesperar somente quando ela realmente começasse a cair. Prefeririam não se antecipar? Talvez.
            Mas até antão nenhum pingo de água caiu do céu escuro daquela cidade grande. Pelo menos não ali, naquele bairro velho do centro. Mas seu prenuncio continuava ali, berrando desespero pra população, espalhando medo, mais assustador que a própria chuva. Mais ameaçador. Causando reações e exceções.
 


domingo, 18 de novembro de 2012

Viagem de trem


Faziam alguns minutos que o senhor de paletó escuro esperava o trem. Olhava insistentemente pra morena de belas pernas que eventualmente retornava o gesto, ora se mostrando tímida ora cheia de si. A velha senhora com um lenço vermelho logo notou e fechou a cara. O trem se aproximava da plataforma quando o senhor de paletó escuro se levantou do banco em que estava, ao lado da morena de belas pernas, e foi se posicionar para o embarque. Já a senhora de lenço vermelhou demorou a se adiantar, esperando o abrir das portas automáticas para sair do seu lugar e tomar o trem.
            Quando as pessoas entram nesse tipo de trem, naquele determinado horário, tendem a lutar por um assento vazio. Logicamente à senhora de lenço vermelho foi concedido um lugar especialmente reservado para idosos, deficientes físicos, gestantes e pessoas com crianças de colo. Assim avisava sempre a voz feminina suave nos falantes das composições. O senhor de paletó escuro teve de ficar em pé, pois não tinha a idade muito avançada, mas por sorte, ficou logo ao lado da morena de belas pernas, que também teve de viajar em pé.
            Não tardou a senhora de lenço vermelho desatou a falar no celular. Ao seu lado, um jovem que lia um livro, pareceu incomodado com este fato. Talvez estivesse incomodado com a total futilidade do assunto o qual a senhora de lenço vermelho falava com sabe-se-lá-quem. Narrava todo seu percurso de trem e metrô pela cidade, como se cada detalhe fosse uma jóia de acontecimento, tão importante para a humanidade quanto para o receptor do outro lado da linha, ou pra ela mesma. Talvez o jovem que lia um livro só estivesse incomodado com o terrível barulho que a senhora produzia enquanto conversava. “Ela bem que podia calá a boca, merda…”, ele deve ter pensado.
            Mas logo o jovem que lia um livro parou de fazê-lo e se pôs a observar atentamente as pernas da morena de belas pernas, em pé a poucos centímetros dos seus olhos. O senhor de paletó escuro percebeu o olhar sagaz do jovem que antes lia um livro, e sorriu. “Filha da puta, safado… Não deve ter nem pelo no saco e já tá secando perna de mulher…”, foi o que os olhos do senhor de paletó escuro pareciam ter dito naquele instante.  Ele parecia ao mesmo tempo estar desdenhando e apoiando a atitude desinibida do jovem que antes lia um livro.
            Na estação seguinte, a morena de belas penas conseguiu um assento, graças a um rapaz magro e pálido que descia naquela estação e lhe cedeu gentilmente seu lugar.  A expressão do jovem que antes lia um livro foi de desapontamento. Que não durou muito, pois assim que se abriram as portas do vagão, uma linda loira de saia curta e uma formosíssima morena de pele bem clara entraram no vagão, ficando de pé ao seu lado. Os olhos do senhor de paletó preto se encheram.  A senhora de lenço vermelho (ainda presa ao celular) parecia se incomodar um pouco com a falta de discrição dos olhos marotos a sua volta. Nesse momento, o assunto que discutia com alguém no telefonema mudou bruscamente pra um tom agressivo e rancoroso (alguma coisa envolvendo seu ex-marido, filhos, brigas de bar e violência doméstica). E novamente o jovem que antes lia um livro pareceu se incomodar com o falatório da senhora de lenço vermelho, que agora praticamente berrava ao aparelho. “CALA A BOCA, SUA FILHA DA PUTA!”, denunciou seu olhar ferino.
            Então o senhor de paletó escuro recebeu uma chamada em seu celular. Diferentemente da senhora de lenço vermelho, ele tinha uma fala muito mais polida, refinada, um discurso de uma qualidade retórica que induzia os presentes alí no vagão a olhar atentamente pra ele, para sua graça e leveza no falar, sua postura de homem firme, que sabe o que fala, que intende de tudo um pouco, um intelectual, um homem de negócios, um especialista gourmet, e tudo mais o que lhe coubesse nas vivas frases que deslizavam-lhe boca-pra-fora. E ao falar, olhava incessantemente para todos os lados, e via que os outros o olhavam, e quando se cruzavam os olhares, desviava num desdém meticuloso, quase falso. “Isso, olhem pra mim”.
            A morena de belas pernas, enquanto isso, se olhava num pequeno espelho de mão, maquiando-se, parecendo ser a única a não notar o incrível retórico que se apresentava alí, gratuitamente, à um público silencioso mas atento. O jovem que antes lia um livro, agora ouvia música em seu aparelho portátil. Olhava mais pela janela que para as pessoas. Parecia ter decidido se isolar da realidade comum daquele vagão, naquele momento, que se resumia aos mundos desconhecidos da senhora de lenço vermelho e do senhor de paletó escuro. Aqueles dois falantes enchiam o vagão com seus discursos distintos mas igualmente intrusivos. A situação foi se agravando, tornando-se quase um embate. Quem atrairia mais olhares? Qual dos assuntos seria mais interessante prestar atenção?
            O jovem que ouvia música parecia não se importar. Nem a morena de belas pernas, que agora, já maquiada, tinha uma postura de mulher fatal, um olhar de mulher caçadora, escolhendo suas presas. “Pobres mortais”. Seu assento era um trono e seus súditos a olhavam incessantemente, sempre de canto, de modo discreto mas incisivo. Quando seu olhar fatal cruzou o do jovem que ouvia música ela pareceu sentir seu poder como ainda não tinha sentido naquele dia. Leu nos olhos do jovem que ouvia música tudo o que queria ouvir. E os olhos dele realmente disseram “Quero trepar loucamente com você, agora!”. No que os olhos dela responderam “Coitado de você”.
            A senhora de lenço vermelho finalmente desligou o aparelho celular, talvez por perceber que seus berros já não eram mais ouvidos, assim como a pastosa e macia fala do senhor de paletó preto também já era ignorada. Passaram-se três estações desde que eles começaram a se embater. E logo o senhor de paletó preto também cessou de falar.
            E o silêncio pareceu constrangedor para ambos os falantes. Foi um momento de desestabilidade. O senhor de paletó preto olhava para todos os lados, meio frenético, e assim também fazia a senhora de lenço vermelho. A morena de belas pernas tinha os olhos fixos no sinal luminoso que anunciava as estações seguintes e o jovem que ouvia música tinha o olhar perdido no horizonte. Só voltou sua atenção novamente para os passageiros quando as belas moças que estavam em pé ao seu lado conseguiram assentos. Ele parecia ter esquecido que elas estavam lá, e seu olhar tornou a expressar desapontamento. “Merda…”.
            Ao chegar na estação terminal, onde todos haviam de sair do trem, o senhor de paletó preto mirou de forma libertina as pernas da morena de belas pernas. “Puta que pariu, que gostosa”. A senhora de lenço vermelho lançou um olhar feroz em direção a morena de belas pernas. “Vagabunda, vadia…” Esta, por sua vez, olhava apenas pra frente, cabeça erguida, corpo ereto, silhueta dançante, se esgueirando entre os passantes. “Ai que ódio desse povo nojento!” Acabou trombando com o rapaz que ouvia múcica. Este, por sua vez, ao pisar fora do trem, olhou nos rostos e nos olhos de cada um e sorriu. Parecia reflexivo, mas o desdém que lhe saltava do rosto ficou exposto, e encheu o lugar, esbarrando em cada um dos presentes ali, que estranhamente, e simultaneamente, fecharam a cara.
 


Um alguém


Um alguém qualquer se sentou numa mesa e esperou que a garçonete lhe atendesse. Ela demorou um pouco para atendê-lo, sabe-se lá por que. O alguém olhou em volta e viu que o ambiente estava cheio. Deve ter pesando que esse era o motivo do atraso.
            Depois de alguns minutos esperando, ele resolveu levantar-se. Andou até o balcão e fez o pedido alí mesmo. Quando voltou a sua mesa viu que já estava ocupada por outros dois alguéns. Ficou puto. Voltou ao balcão e pediu para que lhe arrumassem uma mesa. E foi atendido.
            Não demorou muito para a garçonete lhe trazer o pedido. O alguém pareceu se sentir um pouco ofendido com o modo como a garçonete lhe serviu e fez cara de bravo. Ela não deve ter prestado muita atenção nisso. Então o alguém fez uma cara ainda pior que a anterior, mas não pra garçonete, que já corria para atender outros alguéns.
            O alguém virou-se pro lado e fez alguns comentários com outros alguéns da mesa ao lado. Disse algo sobre o atendimento alí ser muito ruim, sobre a garçonete estar mau humorada, sobre como se deveria atender um cliente, sobre como ele era atendido em outros estabalecimentos mais nobres, sobre como ele se revolta contra a falta de educação e dedicação das garçonetes. Os outros alguéns que ouviam concordaram monossilabicamente.
            Mas contra o que se revoltava o alguém? Ele deveria estar puto com o fato de ter perdido a sua mesa para outros alguéns que não a mereciam. Ou deveria estar puto mesmo com a demora no atendimento, ou com o fato de ter de levantar-se e ir até ao balcão fazer seu pedido, perder sua mesa, tudo por causa da demora do atendimento, já que ele poderia estar atrasado pra um compromisso qualquer, ou com pressa para comer e sair daquele lugar onde o tendimento era ruim e demorova-se muito pra ser atendido e as garçonetes eram mal-humoradas.
            Pode ser também que ele estivesse puto com o mal-humor da garçonete. Pra ele talvez não importasse que o estabelecimento estivesse cheio e a garçonete estivesse muito ocupada. Ou que ela tivesse algum problema que ele desconhecia, que ela talvez tivesse uma doença grave, que algo de ruim possa ter acontecido a um de seus familiares, que seu emprego fosse uma merda, que seu salário fosse ridículo, que ela tivesse que pegar dois ônibus, um trem, um metrô e ainda caminhar meia hora pra chegar naquele estabelecimento onde ela era reprimida, mal-tratada, trabalhava muito, ganhava pouco.
            Talvez ele não se importasse com nada disso. Ele parecia mesmo querer um sorriso dela. Mesmo que fosse um sorriso falso. Ele parecia mesmo querer um sorriso falso dela.
            Ele parecia querer ser o único a estar alí, o primeiro a ser atendido, o senhor de todas as mesas, o dono da garçonete. Por que se fosse, ele talvez a obrigasse a sorrir pra ele todos os dias. Talvez lhe obrigasse a lhe servir todos os dias, em todas as mesas, em tempo recorde. Talvez lhe obrigasse a transar com ele todos os dias, em todas as mesas, o tempo todo. Mesmo que os sorrisos fossem falsos, ou mesmo que os orgasmos fossem falsos.
            Depois de comer, ele pagou pela comida, passou pela garçonete e sorriu pra ela. Ela sorriu de volta. Um sorriso quase triste. Se distraiu e derrubou uma bandeja. O alguém riu de novo. Parecia pensar que ela, a garçonete, não servia para servi-lo.
 


sábado, 17 de novembro de 2012

Toldo


            Havia um certo restaurante, numa certa rua, numa certa grande cidade, onde sempre havia um toldo do lado de fora, cobrindo as mesas onde as pessoas que comiam alí se sentavam. Houve um certo dia, nesse certo restaurante, que aquele toldo não estava mais colocado naquele mesmo certo lugar. Algo errado? Talvez.
            Naquele certo dia, chegou por alí um certo grupo de pessoas que costumavam ir todos os dias aquele restaurante e imediatemente notaram que alguma coisa estava diferente. Notaram a falta do toldo, notaram a luz forte de um dia ensolarado e o vento fresco de um clima agradável.  Mas esse clima parecia agradável demais pra esse certo grupo de pessoas. Imediatamente passarm a reclamar da ausência do toldo, com algumas certas justificativas. Ou erradas. Quem sabe? Um disse que poderia chover. Outro disse qua fazia frio. Outro disse simplesmente preferia que o toldo estivesse alí onde sempre esteve.
            O que na verdade encomodou aquele certo grupo de pessoas naquela tarde ensolarada e de clima agradável? Talvez a mudança inesperada de um toldo que parecia necessário para que pudessem comer alí tranquilos como sempre. Sentiriam, talvez, uma certa dificuldade de conversar sobre certos assuntos, afinal, o toldo estava alí para escondê-los dos olhos e ouvidos de Deus.
            Talvez tivessem medo de se sentar alí sem a proteção divina do toldo, que os salvaria de qualquer perigo iminente, de qualquer catástrofe iminente, de qualquer acaso, qualquer acidente, qualquer coisa não fazia parte de seus planos de comer, beber, rir e papear. Talvez tivessem medo do motivo pelo qual o toldo foi tirado dalí, fosse ele uma motivo qualquer.
            Talvez, e bem talvez, tivessem medo da sensação de liberdade que o toldo lhes proporcionava. Poderiam temer a liberdade, o ar fresco, o dia ensolarado. Saiam todos os dias de edifícios fechados para almoçar debaixo daquele toldo, voltavam para os edifícios, saiam para voltar pra casa, em carros, ônibus, trens e metrôs, e por fim chegavam em casa. Estavam sempre cercados de concreto, tijolos, vidros e metal. Talvez tivessem medo de estar somente cercados de ar fresco e luz.
            Naquele certo dia eles comeram, beberam, riram e conversaram de maneira diferente. Comeram pouco, beberam quase nada, riram entre dentes, conversaram sobre nada. Naquele certo momento tudo parecia errado. Eles pareciam perdidos, o toldo parecia perdido, a comida parecia fria, a bebida quente, o riso falso e a conversa vazia.
            No dia seguinte, lá estava o toldo devolta, onde costumava estar. Estava alí cumprindo seu papel. Protegia, escondia, disfarçava, encobria e cobria a liberdade.
            E aquele certo grupo de pessoas voltou aquele certo restaurante, naquele certa rua, naquela certa cidade grande e viu que o toldo estava alí. E pareceram julgar que agora estava tudo como devería ser, tudo certo.
 


O mensageiro


É curioso observar o quanto as pessoas falam sozinhas. Em diversos lugares, tempos e situações. Nas praias, campos e cidades. Nas pequenas, médias e grandes cidades. Nos bares, nas ruas, nos prédios, nos becos, nas praças, trens e trânsito. Sim, foi exatamente ali dentro de seu carro que um motorista (que provavelmente nem sabia disso, mas) estava sendo observado por um jovem, enquanto ele, preso no trânsito, berrava, xingava, abria bem os olhos, dava com a cabeça no volante do carro.
O jovem logo deve ter percebido que o comportamento feroz e revoltoso do motorista não era simples fruto do mal-estar que aquela situação poderia gerar, afinal ficar preso no trânsito deuma das maiores avenidas de uma cidade cosmopolita não deve ser nada agradável. Contudo  o olhar atento do jovem parecia ter decifrado não só a mensagem que o motorista queria transmitir, mas também o quem seria destinatário.
É aí que entra um terceiro. O motorista xingava, berrava e esmurrava o volante porque se incomodava com o modo como o carro da frente estava sendo guiado.
“VIADO!”
O sorriso leve e curioso do jovem rapaz parecia dizer que ele sabia que o tal do “Viado” era o motorista do carro da frente. O olhar desviado do jovem, que mirou o segundo carro, pareceu bem significativo. Talvez ele estivesse apenas se deliciando da então avantajada posição de pedestre, sentado na mesa de um boteco, posta na calçada, tomando whisky com gelo, fumando um cigarro. Ou talvez ele realmente estivesse sentindo que deveria cumprir seu dever.
Sim, ele foi abençoado com a mensagem secreta, perdida, sem receptor, quase divina. Ele deve ter sentido esse chamado na alma, porque em certo momento tremeu. Deu o último gole na bebida, pegou o maço de cigarros e levantou-se.
Era fatal. Sua expressão era de grande convicção, embora estranhamente branda e pacífica. Ele era o mensageiro, o enviado, o escolhido, o messias da metrópole ruidosa e inversamente muda, da cidade do incomunicável, das solidões e dos estresses, o arrebatador, o ser eleito para saciar aquela ânsia que a mensagem sente tem em ser enviada, transmitida e recebida.
E á foi ele até a janela do carona do carro da frente. O motorista, parecendo surpreso, fitou-se de canto de olho com um certo ar de aborrecimento no rosto. O jovem sussurrou alguma coisa sobre o motorista do carro de trás. O outro, agora com uma imensa interrogação no olhar, virou o pescoço e olhou pra traz. E lá estava o motorista do carro de trás, inquieto, bravio e mal-educado. O da frente sem dúvida deve ter visto/ouvido o “FILHO DA PUTA!” que o de trás disparou em sua direção, sem medo. Foi a ligação direta. O milagre da comunicação estava feito. A sacra missão do jovem messias foi cumprida. Ele imediatamente se afastou do carro e saiu em caminhada pela calçada.
O motorista da frente, que agora tinha muitas exclamações no olhar, abriu violentamente a porta do carro e avançou em direção ao veículo de trás. Esmurrou o capô, gritou, xingou e desafiou o outro motorista. Este, por sua vez, também saiu de seu carro, e num instante socou seu adversário no olho esquerdo. E depois na barriga. E depois na boca. Tudo muito rápido, tão rápido quanto o revide do outro motorista, na orelha, no baço, no joelho. Uma gritaria imensa tomou conta da multidão de motoristas até então silenciosos.
A pouquíssimos metros dalí, o jovem mensageiro que se afastava da barbárie, acendeu um cigarro, sublime, e prosseguiu seu caminho.
 


Dona Zenaide



Ninguém estranhava o fato de dona Zenaide falar sozinha pela rua. Era extremamente normal. Já era senhora de idade (apesar de dizerem que era mais velha do que aparentava), parecia que vivia sozinha numa casa velha na Aclimação. Lugarzinho bem feio, pelo menos por fora. Por dentro ninguém jamais havia conhecido. Talvez por isso duvidassem se ela realmente morava sozinha. Falava sempre de uma sobrinha, que ninguém jamais havia visto. O balconista da padaria, na esquina da quadra, disse que ela era louca mesmo, que vez ou outra surtava, ia parar no hospital. Talvez por isso, falar sozinha não era nada.
Sabia-se que dona Zenaide costurava, e que possivelmente não recebia aposentadoria. Ninguém nunca havia ouvido falar de algum marido, ou qualquer coisa parecida. Quando ela se mudou pro bairro, lá pelos anos oitenta, veio sozinha. Na verdade dividia a casa com uma outra moça (na época eram jovens), que hoje ninguém sabe o nome, nem onde ela está e quem dirá se ainda era viva. A cabeleireira, que se dizia a moradora mais antiga da quadra, sabia dessa outra moradora da casa porque costumava cortar o cabelo com ela, quando o salão ainda ficava do outro lado da rua, quase em frente à casa pra onde dona Zenaide se mudara.
Tinha gente que achava que dona Zenaide abandonou a família, ou fugiu de algum lugar bem terrível. Seu comportamento fechado e arredio parecia dizer que aquela mulher sofreu muito, e não parecia gostar muito das pessoas. Tinha três gatos. Mas parecia não gostar muito deles também. Vivia berrando seus nomes, xingando, derrubando (ou arremessando) coisas. Os vizinhos comentavam sempre. No salão de beleza, na padaria, no boteco, na mercearia.
A filha da dona da farmácia, uma japonesa bonitinha, deixou um vestido, certa vez, pra dona Zenaide consertar. A mãe reclamava em frente ao balcão. - “Se viu que a Zenaide fez com o vestido da minina? Cagô tudo!” – gesticulava ferozmente, com o pacote de papel higiênico que empilhava nas prateleiras. – “E olha que eu paguei caro praquela velha! Puta que pariu!”.
            Diziam que dona Zenaide envelheceu “rápido demais”. E que sua casa se degradou não menos rápido. Em poucos anos já parecia que a casa (e dona Zenaide) já havia atravessado gerações. Alguns, como a própria dona da farmácia, acreditavam que era por causa de doença. Dona Zenaide vivia comprando remédios, de vários tipos. Esse que parecia ser, talvez, um dos poucos motivos pra ela sair de casa. Outros, como o cara da pizzaria, acreditavam que era por causa da solidão. Ele, como tantos outros, conheceram dona Zenaide já sozinha, já meio doida, falando sozinha, às vezes gritando.
            Mas o que mais incomodava a vizinhança na figura já estranha e nada amigável de dona Zenaide era seu jeito de andar. Bizarríssimo, de fato. Meio inclinada pra esquerda, com a mão direita um tanto imóvel, a cabeça num certo estalar. Parecia dolorido pra ela caminhar. Talvez outro motivo pra ela não sair de casa. Mas uma pessoa, apenas, acreditava que ela não saía de casa por causa da tal sobrinha. Essa pessoa afirmava que já havia visto sim a menina, e que ela sim, não a velha, estava muito doente.
            Essa pessoa era tão estranha e enigmática quanto dona Zenaide. Era um senhor mulato que vivia sempre no balcão do boteco, tomando cachaça. Também afirmava ser morador do bairro há muitos anos. – ‘Iiiiishi fio, cê num sabe nada que eu passei aqui nessas budega...” – Caboclão  forte, apesar da idade, pedreiro, sempre foi pedreiro, segundo ele próprio, veio do nordeste quando era moleque e sempre morou na região. Dizia que conhecia dona Zenaide desde antes de ela estar sozinha. Lembrava de uma moça, mas sempre achou que fosse sua sobrinha. A cabeleireira jurava que não. Jurava que a moça já morava ali e dona Zenaide veio para dividir o aluguel da casa. Sabia até que as moças (foi nos anos 80, lembra?) atrasavam o pagamento do aluguel, pois o imóvel era do seu cunhado. Sabia também o quanto as moças bebiam no boteco, que na época pertencia a outro dono, um árabe que morreu num assalto.
Na verdade, Zenaide e a companheira não foram sempre reservadas, trancafiadas em casa. Isso aconteceu alguns poucos anos depois de elas estarem vivendo juntas. A companheira já tinha fama de tomar vários porres. O caboclão do boteco disse que ela era linda, jovem, gostosinha. E que deu em cima dele uma vez. Ele só não fez nada porque era a sobrinha da Zenaide - “...que tamém era gostosa, má ficô acabada...”. Concordava com a cabeleireira quando dizia que a moça bebia bem. Passava várias madrugadas tomando cerveja e cachaça dos outros. Até que certo dia sumiu.  O caboclo disse certa vez (isso foi a moça do caixa da mercearia que disse) que o que acabou com as duas foi o envolvimento com a macumba. Disse que elas freqüentavam o terreiro três quadras dali. Fizeram mal uso dos conhecimentos que adquiriam. Ela que disse que ele disse.
Já a cabeleireira (isso foi o balconista da padaria quem disse) tinha certeza que foi por causa de drogas. Elas não pararam no álcool não. Deviam usar muitas outras coisas. Deviam fumar maconha, cheirar, injetar, até crack elas deveriam usar. Talvez por isso dona Zenaide tenha envelhecido tão rápido. Talvez por isso a outra moça tenha sumido. Deve ter ficado muito doente. Nisso a cabeleireira e a dona da farmácia concordam. A saúde das duas não deveria ser das melhores. A dona da farmácia (isso foi ela mesma quem disse) acha que é DST. – “Devia é dar muito por aí!”. A tal da outra moça deve ter morrido disso. Se é que morreu.
O caboclão insistia que ele ainda estava lá. Ele a via às vezes pela janela. Mas só ele afirmava isso. Era a sobrinha da Zenaide. Então, num dia desses a vizinhança notou que dona Zenaide não apareceu mais. Ninguém mais a viu na farmácia, nem na padaria, nem na mercearia, nem comprando cigarros com moedinhas no boteco. O caboclão insistiu em ter visto a sobrinha na janela na semana passada. A cabeleireira jurava ter ouvido os gritos da velha. A dona da farmácia a ouvia chamar pela sobrinha, na manhã da quinta-feira, quando saía pra trabalhar. O balconista da padaria disse que a ambulância tinha parado na frente da casa dia desses. Mas ninguém tinha de fato visto dona Zenaide.
E a casa continua fechada. As bocas caladas. Ninguém mais parecia se importar com o possível “desaparecimento” daquela senhora maluca e barulhenta. Alguns quiseram crer que ela tinha se mudado de novo. Outros, que tinha simplesmente se perdido por aí, num acesso de loucura. Havia ainda os que acreditavam que a velha tinha sim morrido, e que a tal da ambulância veio retirar seu corpo, apesar de ninguém ter visto. O que era também contraditório com o que dizia a vizinhança, que defendia que ela estava ali, apesar de ninguém ter visto. De qualquer forma, com o passar dos dias, foi-se deixando de comentar o assunto. Ninguém mais falava dela. Nem o balconista da padaria, nem a dona da farmácia, nem a cabeleireira, nem o caboclo. Dona Zenaide foi esquecida.
Talvez seja isso que aconteceu com ela. Desde sempre. Foi esquecida por alguém, ou por uma família. Se refugiou naquela casa, com quem poderia ser sua única família, se divertiu enquanto pode, mas pagou um alto preço por uma possível vingança. Caiu nas drogas, na putaria, na magia negra, na violência da noite paulistana. Teve todos os parceiros possíveis, cometeu crimes, foi presa. Mas um dia sofreu sua punição. Sua família foi tomada. As drogas a levaram. Os espíritos maus a viciaram. Zenaide sabia que a culpa era dela. A menina morreu por sua causa. E ela nunca mais sairia de casa. E nunca mais se divertiria. Sua liberdade lhe foi tomada, junto com sua juventude, sua sanidade e sua família.
Hoje, poucos sabem quem foi dona Zenaide. Poucos sabem que ela morava ali, naquela casa velha, no bairro da Aclimação. Ninguém sabe que ela foi esquecida. E sua casa também. E sua sobrinha, sua companheira de casa, também. E suas costuras mal feitas, seus remédios, seus gatos, suas gritarias. Dona Zenaide desapareceu. E mais uns grãos de poeira sopram no vento da cidade de São Paulo.