Incrível
é a diversidade de atividades (lícitas e ilícitas) que podem acontecer num
lugar um tanto comum. Mais que um lugar comum, aquele beco no bairro da Lapa é
um lugar esquecido. Esquecido pela própria sociedade (ou parte dela), que
abandonou aquele espaço, deixou o beco pra quem lhe bem servisse. E, é claro,
ele ganhou novos usos, diferentes daqueles que possuía antigamente, quando o
bairro (até então industrial) contava apenas com aqueles casarões e grandes “alojamentos”
de proletariado.
Não
diferente de antes, os assalariados ainda são maioria no bairro, mas não são
exclusividade. Uma série de outras figuras pós-modernas perambulam por lá,
inclusive naquele beco esquecido. Sim, o espaço esvaziado foi lentamente sendo
preenchido por aqueles seres e por suas culturas tão estranhas ao cidadão
comum, trabalhador, assalariado. As putas, por exemplo, não são novidade na
Lapa, mas sim naquele beco. Encontraram ali refúgio e sossego no seu trabalho,
longe de cafetões e cafetinas cruéis, exploradores. Ali elas oferecem seus
serviços, negociam preços, discutem entre si, às vezes até saem no tapa. As
travestis, então, nem se fala. São as maiores agitadoras do velho beco,
transformam aquele espaço morto em um grande salão de festas.
Claro
que os pequenos traficantes também usam aquele espaço. É perfeito para a venda
discreta que praticam. Os clientes costumam chegar depois do fim da tarde. Compram
de tudo. Alguns usam ali mesmo. Vão até o fim da rua sem saída, se sentam no
chão, preparam tudo e mandam tudo pra dentro. Alguns saem de lá sorrindo,
outros com uma cara muito pior que estavam quando compraram seu bagulho. Esses
últimos saem sempre correndo, como se ali existisse uma ameaça mortal. E logo
voltam, sedentos de mais barato, compram mais erva, mais pó, mais pedra. Correm
lá pro fundinho e se acabam. É o fim do caminho.
Mas não
só de criminalidade vive o beco abandonado. Tem vezes que meninos de rua usam o
espaço pra brincar. Apostam corrida, brincam de pega-pega, às vezes brincam de
brigar mesmo. Quando não tem ninguém por lá, casais se aproveitam do beco
deserto pra se pegar. Uma putaria lascada. Tem gente que diz que já trepou no
beco. Um tanto estranho. Deve ser bem desagradável, o lugar fede muito, tem
muito lixo espalhado, e por mais que não haja ninguém por ali, o beco dá de
cara com a rua, onde os carros passam eventualmente. Dá pra ter prazer assim? Vai
saber...
Dia
desses, já na madrugada, um menino de rua passou pelo beco gritando. “FILADAPUTA!
FILADAPUTA! FILADAPUTA!”. Um dos traficantes dali, molecão, parou o menino, perguntando
que tinha acontecido.
- Que
foi muleque?! Cê tá locão?!
- Ai
tio, a trava ali num qué me dá o dinhero!
- Qual
trava, mano?
- A do
casão ali! Aquela do pau mole!
-
Filadaputa...
O
molecão enfiou a mão num saco de lixo, tirou dois papelotes e deu na mão do
menino.
- Vende
ae, muleque.
Ele foi
até o fundo do beco. No meio do caminho pegou um pedaço de borracha velha,
gasta. No fim da rua estavam três travestis encostadas num muro mal acabado.
Sem dizer uma palavra sequer, o molecão deu com a borracha em uma delas (a mais
jovem), que caiu no chão podre do beco. Imediatamente as outras duas correram,
berrando, até a entrada do beco, desaparecendo na esquina seguinte. O molecão
deu uma surra na travesti, e só parou quando outro traficante da área lhe gritou
o nome, lá do outro lado. Devia ser cliente importante.
A
travesti ficou ali caída, gemendo e chorando. Logo, um pequeno bando de meninos
de rua cercou ela, roubando tudo que ela tinha ali, dinheiro, bijuterias,
partes da roupa, celular, até a peruca morena. Limparam a coitada. Um dos
meninos ainda deu um chute na barriga dela. E saíram.
Algum
tempo depois o beco estava vazio. Nenhum traficante, nenhuma puta, nem moleques
de rua, nem ninguém, além daquela figura suja e ensanguentada caída ali no chão
imundo. O cheiro de lixo dominava o ambiente, quando um jovem moço chegou perto
da travesti. Ficou ali alguns minutos, olhando em volta. Quando parecia mais
confortável naquele lugar, botou o pau pra fora e bateu uma. Deve ter olhado
por debaixo do que sobrou da roupa da travesti, ficou excitado e não perdeu
tempo. Depois, serviço feito, cutucou a travesti, tentando acordar ela. Com
sucesso. Juntos, foram caminhando pra fora do beco. Ele acendeu um baseado,
ofereceu pra ela, ela aceitou. Sumiram pela rua logo em seguida.
O beco
voltou a ficar vazio. Sobrava o cheiro de lixo e sangue, os papelotes vazios de
crack. Sobrava o silêncio de um beco esquecido pelo Estado e sociedade
organizada. Faltava a pureza dos meninos de rua, a doçura de uma puta jovem e
maquiada, a alegria dos adictos chapados da noite paulistana.